Feminicídio, crime hediondo que aterroriza
O atropelamento pelo próprio filho que tirou a vida de Eliana Tavares chocou a cidade de Campos e teve repercussão nacional. A tipificação pela 146ª Delegacia de Polícia como crime de feminicídio trouxe à tona a situação de mulheres vulneráveis dentro da própria casa, tendo como algozes familiares como filho ou o próprio companheiro. Foi o caso de Eliana com o filho Carlos Eduardo Aquino, e, segundo a polícia, até com o marido quando foi vítima de agressão física, o caso de Letycia Fonseca em que o pai do filho que ela esperava foi apontado pela polícia como o mandante do assassinato de mãe e bebê e de muitos outros casos em Campos e região.
Eliana Lima Tavares, de 59 anos, morreu atropelada pelo filho, Carlos Eduardo Aquino, quando estava andando em uma bicicleta elétrica, na noite do dia 29 de outubro, no bairro Jardim Carioca, em Guarus. O estudante de medicina, além de matar a mãe, deixou outras cinco vítimas que estavam em outro veículo que também foi atingido, logo após o atropelamento. Carlos Eduardo sofreu lesão na face e foi levado por policiais para o Hospital Ferreira Machado. As cinco pessoas foram socorridas pelo Corpo de Bombeiros e uma delas chegou a passar por cirurgia e precisou de doação de sangue.
No dia seguinte à morte de Eliana, o delegado da 146ª Polícia Civil em Guarus, Carlos Augusto Guimarães, informou que o estudante de medicina foi detido por homicídio culposo sob o efeito de álcool/droga, mas que a tipificação do crime poderia mudar. “Em razão do histórico de violência contra a mãe, para saber se foi uma simples inobservância de um dever de cuidado ou se teve intenção de matar a própria mãe”, explicou o delegado logo após o fato. No dia seguinte ao atropelamento, Carlos Eduardo foi autuado por feminicídio.
Já no dia 31 de outubro, após audiência de custódia, a prisão preventiva foi decretada e Cadu, como era chamado pelos pais, foi levado para o presídio Carlos Tinoco da Fonseca, colocado em ambiente separado de outros detentos e transferido para o presídio Norberto Ferreira de Moraes, em Itaperuna, no dia 4 de novembro, por, supostamente, estar sobre risco de morte. “Os detentos tem um código de ética e matar a mãe não é muito bem tolerado até entre os bandidos”, disse um agente que prefere não se identificar.
Em entrevista exclusiva ao J3News no dia 31, o delegado revelou que havia registros de ocorrências por agressão a Eliana cometidos por Cadu e seu pai, Eduardo Aquino. “Ela era vítima de violência doméstica, por meio de agressões físicas e ameaças, há mais de dez anos. Em uma ocorrência registrada na Deam no ano de 2015, ela aparece como vítima de violência por socos, chutes e pontapés desferidos pelo filho Carlos Eduardo e pelo pai. Neste mesmo caso, uma denúncia anônima afirma que além das agressões, a mulher teria sido mantida em cárcere privado”, revelou. Em menos de cinco dias, no dia 01 de novembro, o advogado Márcio Marques, que havia sido contratado pelo pai do estudante, deixou o caso.
Ao encerrar as investigações, o delegado afirmou que “o ato criminoso foi caracterizado como dolo, quando há a intenção de matar. Os laudos periciais confirmaram que as lesões na vítima estavam diretamente relacionadas ao impacto do veículo com a bicicleta elétrica que Eliana Tavares conduzia. O exame do corpo flácido e os danos causados pelo impacto no para-brisa reforçam essa conclusão”, disse Carlos Augusto em coletiva de imprensa.
O delegado destacou também que depoimentos de familiares e testemunhas ajudaram a traçar o perfil do autor: “Um jovem com histórico de comportamento violento e agressivo. Ele já havia agredido fisicamente a mãe em outras ocasiões, além de manter um comportamento de humilhação constante”. Inclusive, um vereador de Campos teria relatado na delegacia que Eliana, após ter se envolvido em um acidente com o carro do filho, teria sido humilhada publicamente, criando um clima de tensão familiar. “Apesar de negar no depoimento, ele sabia que aquela pessoa na bicicleta (viva) e morta (no chão) era a mãe dele e em momento algum mostrou qualquer tipo de ressentimento, qualquer tipo de remorso, muito pelo contrário, chegou a tentar se evadir e ficou preocupado somente com o prejuízo material do veículo”, diz o delegado.
Carlos Eduardo está preso em Itaperuna, no presídio Norberto Ferreira de Moraes, mesmo local onde também está Diogo Nadai e os executores de Letycia Fonseca e seu filho Hugo.
Caso Letycia e Hugo: um ano e oito meses de dor e revolta
Na casa tudo lembra Letycia, desde os cães e gatos que ela deixou até as fotos e quadros da jovem que estão por todo o canto. A jovem morreu aos 31 anos, vítima de crime de feminicídio, em março de 2023, no Parque Aurora, em Campos. E não foi sozinha, Letycia Peixoto Fonseca estava grávida de oito meses e o pequeno Hugo morreu assim que nasceu. No dia do crime, Letycia chegava à casa de uma tia e foi atingida por vários disparos de arma de fogo. Após 1 ano e 8 meses do dia do crime, a mãe de Letycia, Cintia Fonseca, desabafa sobre como está a família. “A tristeza é diária, não tem jeito. E com isso é complicado, porque você tem que descobrir coisas que você jamais imaginava passar. Ainda mais na forma que foi, eu ver minha filha ir embora sem eu poder fazer nada. A sensação de vazio não tem preenchimento”, desabafa Cintia.
Letycia foi baleada cinco vezes por dois homens em uma moto. Ela estava em um carro da empresa na qual trabalhava como engenheira de produção, estacionado em frente à casa de familiares, e no banco carona estava uma tia-avó, de 50 anos, que tem síndrome de Down. A mãe da vítima, que estava fora do veículo, ainda tentou segurar a moto, foi baleada na perna esquerda e acabou caindo. Mãe e filha foram socorridas e levadas ao Hospital Ferreira Machado. Cíntia foi atendida e teve alta. A gestante, no entanto, não resistiu à gravidade dos ferimentos e morreu na unidade de saúde. O bebê foi encaminhado para o hospital Beneficência Portuguesa, onde deu entrada na UTI Neonatal e nasceu de 30 semanas, pesando 1,7 kg, após uma cesariana de emergência, mas faleceu na manhã seguinte, em consequência de insuficiência respiratória e distúrbio cardiovascular. A tia-avó não se feriu.
O pai da criança, o professor universitário Diogo Viola de Nadai, de 40 anos, foi denunciado como mandante do crime. Outros três homens também são réus no processo. Todos estão presos preventivamente. Os quatro homens acusados pelo assassinato de Letycia Peixoto Fonseca vão a júri popular, mas ainda não há data para o julgamento.
Para lidar com o luto, Cíntia se apega aos animais de estimação herdados por Letycia, como a gatinha Marye, que tem 15 anos. “Eu tenho que preencher o meu dia com o vazio que fica. E os animais trazem esse conforto para a gente, porque são sinceros. Quando eu não estou bem eu deito ali na cama, aí a minha gata vem do lado, ela já sente”.
O acusado de ser mandante do crime, Diogo, morava com Letycia. “Ele (Diogo) convivia com nossa família, passava o Natal aqui. Menos de três meses antes, eles almoçavam todos os dias na casa da avó. Todo domingo a gente almoçava junto, aí depois a gente passava o resto do dia jogando canastra. Eu jogava sempre com ele, minha filha como o meu esposo”, disse Cíntia.
Diogo vai responder por homicídio qualificado, cometido mediante paga ou promessa de recompensa; por motivo fútil; através de emboscada, ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima. Ele também responderá por feminicídio, com um agravante: crime cometido durante a gestação, o que pode aumentar a pena. A pena prevista é de reclusão de 12 a 30 anos. O professor universitário vai a júri também pelo homicídio qualificado do bebê Hugo, com um agravante: ser o pai da vítima. Ele também é réu pela tentativa de homicídio de Cintia Fonseca, mãe de Letycia, que estava no local no momento da execução.
Fabiano Conceição da Silva, apontado como executor do assassinato, Dayson dos Santos Nascimento, indicado como condutor da moto usada no crime, também vão responder pelos homicídios qualificados de Letycia e Hugo e a tentativa de homicídio de Cintia Fonseca. Já Gabriel Machado Leite, intermediador entre Diogo e a dupla executora do crime (Fabiano e Dayson), vai responder pela participação no homicídio qualificado.
“Todos se encaixam num crime de homicídio, artigo 121 do Código Penal, com a qualificadora do feminicídio, porque na época do crime ainda não existia o crime autônomo de feminicídio que existe hoje. O crime de feminicídio surgiu agora na publicação da lei, no dia 8 de outubro. O crime de feminicídio agora passou a ser previsto como um crime autônomo, com pena abstrata de 20 a 40 anos”, explica o advogado criminalista Márcio Marques.
Em julgamento realizado por videoconferência na tarde de quinta-feira (7), na 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a defesa de Diogo Viola de Nadai teve recurso negado e ficou mantido que ele irá a júri popular. Agora, o processo retorna à Comarca de Campos. Diogo está preso em Itaperuna.
Cintia vê na neta de sete meses que acabou de nascer, filha do irmão de Letycia, um pouco da filha que se foi. “Até o jeitinho, toda meiguinha, tem os traços dela. Minha neta é toda ela. Engraçado que quando ela está aqui em casa ela pára em frente ao quadro da Letycia e parece que ela conversa. Ela a admira desde bebêzinha. Ela poderia estar aqui, essa tia ia ser muito babona”, se derrete.
A violência de gênero e o retrato da mulher vítima em Campos
De acordo com o Dossiê da Mulher do Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2022 o estado do Rio de Janeiro registrou 111 vítimas de feminicídios e apenas no município de Campos dos Goytacazes foram oito casos. 2022 é o último ano computado pelo instituto. Segundo dados da 146ª Delegacia de Polícia, de Guarus, foram registrados na unidade policial um caso de feminicídio em 2023 e outro em 2024. Já segundo a 134ª Delegacia de Polícia, do Centro, foram oito casos em 2023 e quatro casos em 2024 entre tentados e consumados. Ainda de acordo com a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), em Campos, tiveram em 2023 dez casos de tentativas de feminicídio e, até o momento, em 2024 14 casos.
A secretária de Políticas Públicas para as Mulheres, Josiane Morumbi, esclareceu quais são as principais características dos casos de feminicídio em Campos. “Tem sido possível identificar alguns fatores comuns e o que intriga é que as estatísticas mostram que o perfil de mulheres vítimas de violência em Campos é de maioria branca, com faixa etária entre 30 a 59 anos, solteiras e com ensino médio completo. Mas, quando falamos de feminicídios, esse perfil muda para maioria preta e parda, casadas ou em união estável”, afirma.
Um caso recente na cidade foi registrado em Travessão em julho deste ano. Crislayne Vieira Botazini, de 20 anos, foi encontrada morta com uma sacola na boca, sinais de enforcamento e marcas de sangue na região íntima, segundo boletim policial. Outro caso foi o de um homem que foi preso por feminicídio, no dia 12 de outubro, após matar a própria mulher, Ana Maria Costa, de 68 anos, com marretadas na cabeça, na comunidade do Sapo I. Paulo Roberto Tavares, de 47 anos, apresentava sinais de embriaguez e acionou a Polícia Militar para se entregar.
A psicóloga Ana Lara Vilar explicou que não há padrões que sejam vistos de primeira, mas algumas coisas podem ser observadas com olhos mais atentos sobre o perfil psicológico de possíveis assassinos de mulheres. “Como o homem socar uma parede durante uma discussão, ou acelerar o carro com a mulher dentro para impor poder enquanto fala. Esses dois exemplos são muito comuns e muito ignorados”, diz a psicóloga.
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